A psicomotricidade relacional

A psicomotricidade relacional


Para tanto, não devemos esquecer a premissa da qual eles partem, ou seja, de um marco funcional da prática psicomotriz, para posteriormente discutirmos onde eles divergem ou se assemelham em seus estudos.

Primeiramente gostaríamos de enfatizar que tanto Lapierre e Aucouturier como Negrine, são autores que adotam uma linha teórico-prática. Isto determina que não apenas estudam e pesquisam sobre o tema psicomotricidade, mas que também atuam, acabando por unir teoria com uma experiência pessoal com as próprias crianças.



Os dois primeiros autores são franceses, professores de educação física, psicoreeducadores e inicialmente tratam da prática psicomotriz de uma maneira positivista (funcional). Os mesmos admitem este fato, iniciando com a concepção psicomotriz das faltas, desenvolvida por Picq, Vayer e Le Boulch. Isto acontece no início dos anos 70. No final da década, com a obra Simbologia do movimento (1977), eles marcam o início de um novo período no âmbito educativo: a passagem da psicomotricidade de cunho funcionalista ao método relacional, termo este, criado por eles mesmos. No começo dos anos 80, Lapierre e Aucouturier separam-se, seguindo caminhos diferentes por divergências na maneira como viam a atuação do educador frente às crianças. Estes diferenças de pensamento serão melhor exploradas mais à frente.



Airton Negrine é um autor brasileiro, igualmente professor de educação física, e que tratava da prática psicomotriz de uma maneira funcional como os autores citados anteriormente. Fato este que se altera ao transferir-se para Barcelona (Espanha), a fim de desenvolver sua tese de doutoramento na área de filosofia e ciências da educação intitulada "Jogo e psicomotricidade". A partir deste momento, atua como psicomotricista desenvolvendo o viés relacional da psicomotricidade, vertente esta a qual atua e defende nos dias atuais.



Após esta breve introdução dos autores aos quais iremos reportar, acreditamos ser possível então discorrermos sobre os pontos de vista em que convergem e do mesmo modo as partes nas quais divergem sobre o jogo e a prática psicomotriz.



Pontos convergentes

O primeiro ponto o qual estes estudiosos compartilham se dá no modo como tratam da psicomotricidade, ou seja, desde um marco relacional. Mas o que significa dizer que a prática psicomotriz segue uma linha relacional? Significa que o jogo passa a ser utilizado como elemento pedagógico básico desta prática. Veja que não se trata do jogo tradicional, mas sim do ato de brincar. Na vertente funcional, o que era priorizado eram as "famílias de exercícios" e o dualismo diagóstico-tratamento. Com a priorização do jogo na sessão, a criança tem a oportunidade de se exteriorizar através da ação, pulsão interior, sentir prazer e desprazer, já que o jogo não necessariamente traga consigo apenas sensações agradáveis à criança.



E ao colocarem o jogo como elemento pedagógico principal da sessão de psicomotricidade, eles acabam com a diretividade da sessão funcional, que tratava de exercícios dirigidos. Com isto, fazem um convite à criança experimentar o "jogo livre", o que acaba por trazer-nos uma nova concepção pedagógica.



Negrine concorda com Lapierre e Aucouturier quanto ao fato de o adulto (educador) também necessitar de uma terceira via de formação, que seria além da formação teórica e pedagógica, a formação pessoal. Esta formação faz-se necessária para estes autores, pois acreditam que o psicomotricista deve compreender o que a criança sente e vive, e que o próprio adulto possa conhecer suas limitações e desenvolva ainda mais sua disponibilidade, melhorando sempre a qualidade da relação com a criança.



Outro ponto de aproximação entre os professores seria o de trabalhar sempre com os pontos positivos de cada criança, para que esta se sinta confiante. Num marco funcional, por exemplo, a prioridade é tratar das dificuldades da criança através de exercícios para lateralidade, equilíbrio, coordenação, etc. No marco relacional, a criança supera suas dificuldades e medos através do jogo, exteriorizando-se. Negrine, por exemplo, ao ver uma criança com alguma dificuldade ao realizar algo, se disponibiliza a ajudar.



Negrine e Aucouturier dividem a sessão de psicomotricidade em partes. No início, estabelecem as normas e as regras. Dão liberdade para as crianças falarem sobre o que gostariam de fazer na sessão. No final, ambos oportunizam as crianças a falarem de seus jogos. Já Lapierre se aposenta e não estrutura a prática psicomotriz com enfoque no simbólico, procurando dar ênfase à formação pessoal do adulto.



Negrine tem um ponto de concordância com Lapierre e outro com Aucouturier no que trata da sessão propriamente dita e da forma como atuar com a criança. Com Lapierre, a afinidade se dá no âmbito de que ambos priorizam o "jogo" como elemento principal da sessão de psicomotricidade. Já com Aucouturier, concorda quando este diz que o adulto não deve implicar-se no jogo da criança, ou seja, que o facilitador deve manter uma certa distância. Isto não quer dizer que não devemos nos omitir da sessão, mas apenas observar o jogo e atuar nos momentos em que se fizer necessário. Veremos mais adiante que Negrine também tem um ponto de discordância com cada um dos autores sobre estes dois tópicos tratados neste momento.



Pontos divergentes

Iniciamos a discussão de suas divergências na maneira como tratam a sessão e atuam com as crianças. Como já fora mencionado no parágrafo acima, Negrine tem um ponto de concordância com cada um dos autores. Entretanto, este diverge com Lapierre em um ponto e com Aucouturier em outro. Com o primeiro, a discordância se dá porque Negrine não concorda em disponibilizar o corpo do educador no jogo da criança. O autor acredita que podemos ajudar a criança se esta, por exemplo, tem medo de saltar de um banco. Mas não podemos participar de seus jogos, por exemplo, sendo o "cavalinho" de alguma criança. Na sua visão, o facilitador pode perder o seu poder de comandar a atividade se participar no jogo simbólico dos pequenos. Neste caso, a criança perde a referência do "comandante" e não saberá quando este faz parte do jogo ou quando o mesmo é o professor, que lhe dá alguma ordem, como por exemplo, guardar os materiais ao final de uma prática psicomotriz.



Com Aucouturier, a divergência está nos aspectos os quais devemos priorizar numa sessão. Aucouturier dá ênfase ao jogo de pulsão, que é sensório-motor, seguindo a linha de Piaget. Já Negrine, concorda com Lapierre e potencializa em suas sessões o jogo, ou seja, o livre brincar das crianças.



Outro aspecto que gera divergência de idéias entre os autores é que Negrine entende que a criança joga independente do local onde esta se encontra, contrariando o pensamento de Lapierre e Aucouturier. Estes colocam que os pequenos devam jogar sempre em espaços fechados, dizendo que fora deste tipo de ambiente, ou seja, em locais abertos, esta prática deixe de ser psicomotricidade e passa a ser simples recreação. Percebemos que estes autores não dão maiores explicações, ou mesmo teorizam sobre este assunto.



Negrine critica Lapierre ao relatar que ele muito pouco escrevera acerca da prática psicomotriz, dizendo que este deveria registrar suas práticas, vivências, para que pudesse ser lido, interpretado e criticado, já que se trata de um pesquisador, professor e criador de um novo método, uma prática inovadora de psicomotricidade.



Um outro ponto a ser abordado, é o de que Lapierre e Aucouturier enfatizam não se vincular a nenhuma escola de pensamento, ou seja, que suas idéias e estudos são originais, que até podem buscar algo em um ou outro autor, mas que não se inclinam por um mais do que outro. Negrine, por sua vez, busca aportes para seu trabalho na teoria de Vygotsky, psicólogo de origem russa e que até hoje ainda é pouco estudado pelos psicomotricistas. Além de Negrine, apenas Francisco Ramos, autor espanhol, cita Vygotsky em seus estudos.



Acreditamos que após a devida discussão, nos sentimos aptos a nos pronunciar sobre o que achamos de relevante sobre cada um dos autores e por conseqüência podemos emitir nossa opinião sobre como deva ser uma prática psicomotriz de qualidade, pois isto terá como conseqüência o benefício de quem usufrui desta atividade, em nosso caso, as crianças.



Palavras conclusivas

Ao iniciarmos a parte conclusiva deste artigo, gostaríamos de enfatizar que nos inclinamos a utilizar mais os pensamentos e teorias do professor Airton Negrine. Cremos que sua base teórica, estudos e prática são mais completas do que os estudos de Lapierre e Aucouturier. Entretanto, temos plena noção da importância destes dois autores para a história da psicomotricidade sendo que, inclusive Negrine, cita em sua obra "Aprendizagem e desenvolvimento infantil. V:3. Psicomotricidade: Alternativas pedagógicas", o significado especial que estes tem para ele, seja pela postura de inquietação científica, seja pela formação pessoal do adulto ou pela inovação pedagógica que desenvolvem. Mas este fator por si só não nos convence a acreditar que esta seja a melhor maneira de lidar com a prática psicomotriz e nos faremos entender melhor a seguir.



Primeiramente, concordamos quando Negrine enfatiza e potencializa o jogo livre e mais precisamente o jogo simbólico na sessão psicomotriz, pois neste momento, a criança tem a oportunidade de desfrutar de vários papéis e, pode com isso, por exemplo, liquidar conflitos e vivenciar momentos de prazer e exteriorização. Numa sessão psicomotriz funcional, acreditamos que isto não seja possível, pois a criança passa por uma sessão diretiva, ou seja, não desfruta da liberdade de brincar livremente, tendo como conseqüência, um impedimento de usar a sua criatividade e seu simbolismo durante sessão.



Compreendemos também que o psicomotricista não deva disponibilizar seu corpo para o jogo da criança, pois desta forma, torna-se tarefa complexa para o pequeno distinguir quando o professor é o comandante da sessão ou quando este é símbolo, ou seja, quando o facilitador participa de seus jogos com um papel determinado. A criança pequena não tem a capacidade de fazer esta distinção. Como possível conseqüência, o educador pode acabar perdendo o controle da sessão e deixar de ser a referência para a criança. Temos a convicção de que o psicomotricista deva sim, ajudar a criança a fazer certas tarefas que não conseguiria realizar sozinha, para que transforme exercício em símbolo, e desta forma jogue. Estamos falando em aumentar o vocabulário psicomotriz e, segundo Vygotsky, potencializar a zona de desenvolvimento real da criança.



Sobre a terceira via de formação do psicomotricista, esta se torna de fundamental importância, pois é através dela, que o adulto passa a entender o que se passa na vivencia das crianças, tornando-se apto a ter uma melhor relação com os pequenos, o que contribui para um melhor desenvolvimento deste. O adulto passa também, a ter noção de seus limites e habilidades para que possa encontra sua própria autenticidade. Inferimos ainda que esta formação deva ser continuada e nunca deve terminar, assim como colocam Lapierre e Aucouturier.



De Aucouturier e Negrine podemos nos espelhar na maneira como organizam uma sessão de psicomotricidade, com partes (ou rituais) bem divididos e específicos, com o cumprimento de normas e regras pré-determinadas e com a oportunidade das crianças falarem no início e ao término das sessões sobre seus jogos, anseios e outras coisas que venham em suas mentes.



Na parte que versa sobre a atuação do facilitador em uma sessão, entendemos que esta deva ser responsável e de qualidade. Que o adulto possa primeiro observar o ato das crianças, ler o seu significado e a partir daí traçar estratégias de atuação, sejam estas verbais ou corporais. É bom lembrar também de que, acreditamos que se deva trabalhar com os pontos positivos da criança, com o que ela sabe fazer e gosta de fazer. Desta forma, ela torna-se mais autoconfiante, e com isto ela se sente em condições de lidar e liquidar com seus conflitos internos.



Quanto ao local das sessões, deve-se lembrar as palavras de Negrine quando este autor diz que a criança joga independente do local onde esteja, ou isto é, ela joga tanto em espaços abertos quanto locais fechados, contrariando a idéia de Lapierre e Aucouturier. Estes dizem que a psicomotricidade se dá apenas em lugares fechados, e que em lugares abertos esta prática seria uma forma de "recreação". Além disso, não baseiam esta afirmação em teoria alguma. Independente do que pensam os autores, temos a certeza de que a criança joga em qualquer lugar, pois para isto, ela precisa apenas de seu próprio corpo e de algum motivo para simbolizar, portanto, ela pode jogar até mesmo em locais de espaço reduzido, como dentro de um carro, a título de exemplo.



Finalizando, gostaríamos de dizer que a prática psicomotriz numa vertente relacional exige do educador um compromisso muito sério, de muita dedicação em observar, analisar e traçar estratégias para intervir com as crianças. Seja para criação de vínculos, para provocar a exteriorização ou para reafirmar normas e regras. O adulto deve estar sempre buscando maneiras de aumentar e melhorar a qualidade desta prática, que torna-se cada vez mais fundamental para o desenvolvimento infantil.

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